quarta-feira, novembro 29, 2006

o frio que (se) faz...


Foi o inverno que chegou antes do tempo à praia onde um dia aportámos, para dentro e fora dos sonhos que não soubemos guardar.

"Listen. There are moments when life calls out for a change. A change. It is just like the seasons. Our spring was wonderful. But the summer is over. For a long time. And we missed the autumn. Now suddenly, it is cold, so cold that everything freezes. My heart stopped. Our love fell asleep, it was surprised by the snow. But those who are sleeping in the snow, do not notice death. Keep well."
Francine (Natalie Portman)
Paris je t'aime
Fotografia: Henri Cartier-Bresson

segunda-feira, novembro 27, 2006

no fundo

Isso, beija-me o fundo das costas e conta-me histórias de paixão e lágrimas com a língua.
Não preciso da verdade. Dá-me apenas este pedaço de tempo esquecido a trocarmos fôlego perdido e carinho emprestado. Dá-me só a sinceridade do teu calor e a certeza do teu perfume a morder-me a pele. Não preciso da verdade.

Fotografia: Barnaby Hall

domingo, novembro 26, 2006

quieto



Pudesse eu congelar os instantes em que me encontraste sem precisares de mapas, palavras ou desculpas.
Então, poderia agora, sem a borracha do tempo, mostrar-te como não nos procurámos, como os nossos corações chocaram sem o podermos antever ou evitar, como nos coubémos, como foste mais meu do que querias, como não pudeste fugir, como não soubeste como ficar.
Pudesse eu suster-te quieto a derramares medo, sorrisos, desejo e lágrimas misturados nos meus braços, sem precisares de razão ou de perdão. Quieto, perto, aqui.
Então, lembrar-te-ias, suspirarias e, por fim, sorririas, sem poderes distinguir os teus e os meus olhos no silêncio do início e do fim.

suspenso no tempo...

Porque o amor exige um pouco de futuro e, para nós, não havia senão instantes.
Camus
Fotografia: Robert Doisneau

quase perfeito


Não me lembras o céu
Nem nada que se pareça
Não me lembras a lua
Nem nada que se escureça
Se um dia me sinto nua
Tomara que a terra estremeça
Que a minha boca na tua
Eu confesso não sai da cabeça

Se um beijo é quase perfeito
Perdidos num rio sem leito
Que dirá se o tempo nos der
O tempo a que temos direito

Se um dia um anjo fizer
A seta bater-te no peito
Se um dia o diabo quiser
Faremos o crime perfeito

Donna Maria

sábado, novembro 25, 2006

prefácio


Deixar o corpo tremer, a pele eriçar, a boca derreter. A razão a esquecer todas as leis que nada valem à avalanche de palpitações descompassadas. A vontade a fazer a chuva desaparecer, e os carros e a música, e os ontens e os amanhãs, e o frio. Amainar o medo. Deixar este beijo entrar e percorrer-me os cantos e recantos de desejo por arder, soprar as cinzas por limpar. Deixar-te limpar as lágrimas que me fogem. Respirar. Suspirar. Beijar-te outra vez. Até me esquecer de como começou. Até me esquecer de respirar.

quarta-feira, novembro 22, 2006

muriel

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
(...)Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
(...)Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo

só um bocadinho

Deixa-me adormecer aqui, nas dobras do teu perfume a chuva miudinha e tentação a conta gotas.
Posso? Esquecer-me de mim, neste pedaço de ternura quente e adiada?
Só um bocadinho. Só até este coração parar de tremer. De frio ou de medo, não sei.
Ou então até ficar com ele dormente, de tanto me pesar e badalar sempre que o tempo deixa de contar. E de se ouvir.

Fotografia: Sydney Shaffer

domingo, novembro 19, 2006

cocktail

- Não acredito em despedidas. Acredito em reencontros. Acredito que o destino pode juntar aquilo que a vida, um dia, separou.
Ouvi-o ontem, com um sotaque a tango e malabarismos de mãos e coração.
A vida é soberana e irónica nas voltas que dá. No que leva, no que traz, e no que traz outra vez.
Eu também não acredito em despedidas. E ontem soube das saudades não sabia ter dos teus cocktails de palavras, martinis, olhares e beijos por devolver. Foi bom reencontrar-te.

Fotografia: National Geographic

terça-feira, novembro 14, 2006

a ilusão



... da verdade (?).

"Perhaps there is truth in this illusion."
The illusionist.

A não perder. Porque nem tudo é o que parece.

ninguém

nenhum lugar se escuta no lugar onde não existes.
aqui, não há sequer o teu esquecimento. há palavras
que não te negam. crescemos sem esperar nada de ti.

se és o silêncio, nós não conhecemos o silêncio. se és
a solidão, és inútil. o que existe longe de nós não é a
nossa casa. nós suportamos as paredes de nossa casa.

nenhum tempo pode esquecer o tempo que te esqueceu.
agora, a música repete outros rostos. os intantes não
se lembram de ti. o horizonte tenta proteger-te do medo.

José Luís Peixoto

Fecho os olhos. Vejo aquilo que se vê com os olhos fechados. Nada mais. Com tudo o que uns olhos fechados podem ter dentro.
Espero que o sono venha. Espero outra vez. Não adormeço. Quem me derruba não é ele. Nem sequer o cansaço pesado no corpo. Quem me vence é tudo o que se vê de olhos fechados.

Post nº 100
Fotografia: Christian Coigny

frases (des)feitas

Dizem que uma mentira repetida muitas vezes se pode tornar numa verdade.
Deve ser na sequência desta rebobinação constante de mentiras convenientes e verdades tremidas que surgem as certezas de quem gosta de chamar fantasia ao que pulsou vibrante dentro de quem o sentiu e tremeu.
De facto, no que toca a verdades, cada um tem a sua, ou a que lhe dá mais jeito. A minha faz-se do que os meus sentidos olham, tocam, cheiram, ouvem, saboreiam e, acima de tudo, do que o coração me diz. Há quem lhe chame ingenuidade, eu prefiro chamar-lhe sensibilidade e bom senso, pelo menos, de mim para mim.
Afinal, o pior cego é mesmo o que não quer (ou sabe) ver.

domingo, novembro 12, 2006

dos deuses

Há prazeres que nos tiram a água dos olhos e deixam a boca sem palavras.
Para que precisamos delas quando temos os sentidos todos a apurar, derreter, aveludar com estes pedaços de céu e de pecado...

Fotografia: GettyImages

raios

Apanhar sol por dentro. Fazer-me festas ao fundo da nuca da alma enodoada. Lamber-me as feridas abertas. Esperar que sare.
É de cansaço no corpo, ternura hibernada e desabrochares adocicados que se têm feito estes dias, a tirar de cima do peito este peso morto de ti.

Fotografia: Peter Turnley

terça-feira, novembro 07, 2006

sonhos corridos


E se me fizesse personagem principal de um desses sonhos que te ocupam as noites, órfãs das estrelas que trouxe comigo quando te disse adeus?
E se contracenasse contigo, a revesarmos os pecados e as rendições?
E se nele entornassemos de uma vez o suor e os gritos que nos andamos a dever desde que deixei de te seguir o trilho?
E se te fizesse a vontade e nele te calasse as verdades rafadas com a minha pele a devorar-te os sentidos?
E se não mais houvesse palco, e guião, e adereços? E se os nossos papéis se tivessem esgotado? E se as cortinas já foram corridas e só falta quem aplauda este fim mudo e a preto e branco?

Levanto-me da sala vazia. O silêncio dos corações quebrados na plateia ecoa na minha ausência. Ninguém. É tempo de ir sonhar para dentro de outra noite e de outro filme.
Bons sonhos.

Fotografia: Douglas Bizzaro & Elisabeth Moss

domingo, novembro 05, 2006

carrossel

Enrosca. Desenrosca.
Enlaça. Desenlaça.
Vira. Revira.
Aquece. Arrefece.
Afasta. Agarra.
Dá. Tira.
Eu a morder o lábio. Tu a esqueceres a mão na minha perna.
Assim, aqui.
Em voltas, às voltas, de volta, na direcção dos avessos que trocamos.

Fotografia: Gettyimages

home

É bom regressar.
Voltar ao que nos acalenta o corpo e amacia o coração. As noites de lareira regadas com vinho maduro e sabor a castanhas. Deixar o calor entrar, o de fogo e o que vem de dentro dos sorrisos e das conversas de ontem e de sempre. O cheiro do pão, amassado com as mesmas mãos grisalhas que me conhecem antes de mim e que, de quando em quando, me sustêm as lágrimas. Fazer as pazes com as mágoas. Sacudir o cansaço.
Depois? Depois deixar o calor entrar outra vez. Saborear mais um trago de vinho e de amor maduro com rugas. Depois inspirar. Derreter o gelo. Suspirar. E deixar o calor sair.
É bom estar em casa.


Fotografia: Gettyimages

quinta-feira, novembro 02, 2006

diz-me


Ah, si ya perdimos noción de la hora
Si juntos el futuro se demora
Cuéntame ahora cómo he de partir

Ah, si cuando te ví, me eché a soñar, fue casi desvarío
Romp con todo, quemé mis navíos
Cuéntame ahora adónde puedo ir

Tú y yo, si en travesuras de noches eternas
Ya confundimos tanto nuestras piernas
Dime con qué piernas debo seguir

Si dejaste derramar nuestra canción
Si en las arenas de tu corazón
Mi sangre erró de vena y se perdió

Cómo, si en el desorden del mueble extendido
Mi pantalón enlaza tu vestido
Y mi zapato al tuyo pisa aún

Cómo, si nos amamos, hechos dos paganos
Tus pechos aún están en mis manos
Dime con qué cara voy a salir

No, pienso que hacer la tonta tú aparentas
Te dí mis ojos a tener en cuenta
Cuéntame ahora como he de partir

Chico Buarque
Fotografia: Willy Camden

quarta-feira, novembro 01, 2006

horto de incêncio

Agitaram-se as águas que dormiam mudas nesta terra dos sonhos moribundos e todas as lágrimas por existir e por nascer se incendiaram. Escorreu o que ficou por enterrar e todos os amanhãs que ainda não soube velar.
Não pensei que lacerasse. Não pensei que cegasse e apunhalasse. Que sangrasse.
Porque esta dor se faz de todas as mortes por chorar, de toda a esperança por enlutar, de todos os adeus que se encobriram e adiaram.
Jamais saberás o que por aqui ardeu e como queimou. Mesmo eu preciso de me esquecer deste horto de incêndio que me consumiu a alma na eternidade daqueles instantes para então soprar as cinzas de ti para longe, bem longe deste cemitério de palavras, abraços e pecados.

Fotografia: Eryk Fitkau