quarta-feira, outubro 18, 2006

náufragos


"As palavras não valiam nada, eram só palavras. Ela já existia antes delas. Ela continuaria a existir depois delas. Ela esqueceria todas as palavras, todas as perguntas, os sons aflitos. Ele fechava os olhos para não ter de ver o que quer que fosse que se mostrasse, e sentia uma terna dor abraçar-lhe o corpo. (...)
O coração batia-lhe tão alvoraçado como se quisesse escapar para outro lugar. Outras vezes uma paz envolvia-a como se estivesse atacada por uma espécie de morte. O presente espalhava-se como uma mancha, para trás e para a frente vencendo a crista da onda dos instantes. O tempo é clemente com os apaixonados. Um lugar onde podem proteger os seus corpos. Até restarem só as incandescentes palavras.
Sentia-se apaixonado como pela primeira vez. Diante da face dela o mundo inteiro parecia-lhe supérfluo. Não consegua deixar de a olhar(...) A face dela permitia que o tempo avançasse, se fosse abrindo à sua frente. Sem ela corria o perigo de as coisas todas estacarem, o mar secar e o céu cair. (...) Ele levantava-se, continuava a olhá-la e não conseguia dizer uma palavra. A sentir essa estranha ansiedade na alma. Como se fosse pela última vez. (...)
Estavam apaixonados um pelo outro. Não sabiam quando isso lhes tinha acontecido, ou como ou porquê. Ou sabiam ambos que isso lhes tinha acontecido desde o primeiro instante em que tinham sabido um do outro, ou mesmo um pouco antes, que era fatal, que mais nada tinha qualquer sentido. Que no príncipio e no fim de qualquer hora, de qualquer trajecto, argumento, sonho ou pesadelo se encontravam um ao outro, voltavam a estar eles, só eles."

Pedro Paixão

Fotografia: Hugh Arnold